Friday, 6 March 2015

Oudegracht



Oudegracht em Utrecht, Fevereiro último, poucos dias antes da minha partida para Portugal





O Oudegracht, esse extenso canal no centro da cidade da Utrecht, foi o meu "verso em branco à espera do futuro", como naquela belíssima canção do José Luís Tinoco, interpretada pelo Carlos do Carmo.

Utrecht, especialmente por dois motivos, é uma cidade muito importante e significativa para mim.

Foi lá que conheci duas pessoas que me são muito queridas e foi lá que fui aprender Neerlandês, na Universidade, mais precisamente, no Instituto James Boswell.

Não era um curso universitário de 4 anos, mas sim um conjunto de 3 módulos intensivos, de 2 meses e meio cada, dos diversos níveis de proeficiência de domínio linguístico, definidos pela União Europeia: A1 (nível inicial) e B1 e B2 (níveis intermédios). Cada nível custava € 1000. Muito caro para nós, mas preferi não solicitar a ajuda da Câmara (não por uma questão de orgulho, mas por uma questão de salvaguarda - digamos que há uma certa independência que gosto de manter, sobretudo por ser estrangeira). Foi pago com muito sacrifício e sem qualquer tipo de ajudas familiares ou créditos bancários e, por isso, feito de forma intermitente, à medida das possibilidades. Nada de novo, para quem, desde os 13 anos, foi responsável pelo financiamento dos seus estudos (dos 13 aos 17, com bolsa de estudo desde que tirasse boas notas, e dos 17 em diante, a trabalhar, incluíndo nas férias).

Quando fui para lá, em Abril de 2008, não sabia uma única palavra de Neerlandês, nem tão pouco de Alemão, pois, em Portugal, só tinha estudado Inglês e Francês. Durante a frequência do nível A1, senti-me muito perdida. A maioria dos meus colegas já vivia nos Países Baixos há 4 ou 5 anos e estava lá para estruturar os conhecimentos básicos da língua (alguns colegas até já tinham "tido umas luzes", em cursos iniciais, nos respectivos países de origem). Lembro-me que foi especialmente difícil habituar-me aos sons e à construção frásica do Neerlandês (parecia que tinha de pensar ao contrário).

A curta duração de cada aula (2h cada, se a memória não me falha), a frequência das aulas (3 vezes por semana), a curta duração dos módulos (2 meses e meio) e a dimensão das turmas (16 alunos, em média) também não facilitaram o processo de aprendizagem. Era impossível, nestas circunstâncias, que cada um de nós tivesse oportunidade de falar um bocadinho em cada aula. A consolidação das aprendizagens também era prejudicada com o método seguido: cada aula correspondia a um novo tema e a novas regras de gramática. Não havia tempo de reflexão, de maturação, sobretudo para quem, como eu, estava literalmente a zeros. Lembro-me de me sentir uma menina de 6 anos, a dar os primeiros passos na Escola Primária, mas, desta vez, sem aquele conhecimento básico e elementar da língua que se adquire nos primeiros anos de socialização com a família e os amiguinhos e vizinhos mais próximos. Aos 37 anos, sentia-me completamente desadequada, desajustada e infantil.

À época, já sofria de Hipotiroidismo e não sabia: o raciocínio estava muito lento e a memória, "nas ruas da amargura". Nunca me tinha sentido assim em toda a minha vida. Na Escola Primária, fui a melhor aluna da classe e, na Telescola, estava entre as 5 melhores do posto. Já no Liceu, andava entre as três melhores da turma e, na Faculdade, era uma aluna mediana (quando tinha tempo para estudar melhor, até conseguia umas notas simpáticas).

Levei 2 anos para conseguir que os médicos holandeses me levassem a sério e que eu não estava assim, cansada, por ter mudado de país, como me foi dito pela minha primeira médica de família. Se aquela tonta soubesse um décimo da minha vida, não dizia tamanho disparate ( de cansaço, percebo eu e bem). Eu não me reconhecia, tinha saudades de mim, da rapidez do meu raciocínio e da forma fácil como costumava aprender. Foi um período deveras angustiante.

Sempre me coloquei na vida como uma eterna aprendiz, curiosa em relação ao mundo e grata por qualquer correcção que me queiram fazer e me permita melhorar. Na Escola Primária, lia muito. Primeiro, porque gostava e segundo, porque, a partir dos meus 7 anos, deixou de haver dinheiro para comprar bonecas e só havia duas coisas que podia fazer, além de brincar na rua ou na casa das vizinhas: ler (todos os dias ia à biblioteca buscar livros) ou dar caminhadas com o meu avô, durante as quais falávamos de tudo, sobretudo de política e história, sempre à medida da minha idade. O meu avô, que era analfabeto, foi o homem mais inteligente que conheci - tinha muita experiência de vida, sabia simplificar os assuntos e enquadrá-los muito bem. Ele conseguia transportar-me a outras épocas, a outras realidades (era como se as visualizasse, estivesse lá) e foi com ele que ganhei o hábito de ver os noticiários e de procurar e comparar informação. Muito do que sou hoje, devo ao meu avô. Era um homem muito íntegro e honesto, que me ensinou a encarar a realidade de frente, por mais dura que ela fosse.

Quando terminei o nível B1, o professor disse-me que estava com dúvidas se me devia passar ou não (a minha média era de 50%). Ele sabia que eu tinha trabalhado muito, mas as aprendizagens estavam aquém do desejado para "me aguentar" no B2. Eu vi que ele estava tentado a passar-me, mas disse-lhe, na hora, que, em caso de dúvida, não se deve passar um aluno (a melhor forma de defender-me, enquanto aluna, era reter-me no B1). Ele sorriu e eu senti-me em paz e ...inteligente, pela atitude tomada.

Foi só na repetição do B1 que comecei a perder o medo de abrir a boca. Mas houve um dia que me tocou particularmente. Nessa tarde, "desabei" e chorei no campus da Universidade. A professora apresentou uma imagem do Mosteiro dos Jerónimos e perguntou-me se podia descrever o estilo arquitectónico do edifício. Eu, contentíssima. O tema era da minha área de formação, um monumento que acho lindíssimo e, de repente, era como se todas as palavras quisessem saltar da minha boca. O pensamento chegava veloz, o coração batia mais depressa, mas a fluência que eu queria ter não surgia...em Neerlandês. A professora foi um bocado impaciente e foi um dos momentos mais tristes da minha vida. À saída da aula, discretamente, sentei-me junto a uma árvore e as lágrimas correram-me cara abaixo. Não era parva que não soubesse que o nível de complexidade dos temas e a duração dos módulos estavam completamente desadequados entre si. Tinha consciência disso. Mas o desejo, a paixão de falar sobre o que gostamos e não conseguir, dói. Eu sabia que a professora queria uma descrição simples, mas, nesse caso, talvez devesse ter escolhido, por exemplo, um edifício do Estado Novo - aí, já seria mais fácil, creio...;-))

Mas, pronto, a  Vida é isto mesmo: momentos, experiências e tudo faz parte, dores e alegrias, e sobretudo, os afectos...

Oudegracht e Utrecht trouxeram-me duas pessoas de quem gosto muito e por quem me sinto muito estimada. No dia que tirei esta fotografia, estive com ambas. Uma delas, a M. veio com os gémeos passar a tarde comigo. Foi uma tarde de gargalhadas, desabafos, partilhas e dos putos a correr pela sala. Sentadas no chão, entre almofadas e mantas, a comer o que ela trouxe, que eu não tinha nada em casa, e ela a experimentar os casacos que me deixaram de servir e nela estavam óptimos e ficavam melhor ainda. No final da tarde, nem foi preciso pedir, levou-me até Utrecht, que lhe ficava a caminho, para me encontrar com a R., que me tinha telefonado dias atrás a dizer que ia estar na cidade e queria ver-me, antes da minha ida para Portugal. Foi giro ter estado com as duas e no mesmo dia, na cidade onde nos conhecemos.

Gosto desta foto, especialmente, por isso. Estas duas meninas já me deram muitas alegrias e tudo começou em Utrecht, no Oudegracht....

E, da minha infância boémia entre os 4 e os 7 (nem vocês imaginam, juro que não estou a brincar....), Carlos do Carmo. O meu pai gostava imenso dele e, por conseguinte, ouvia-se muito, lá em casa.

"No Teu Poema", esse maravilhoso pedaço de poesia de José Luís Tinoco.

Próxima paragem: Lisboa...




6 comments:

APS said...

Esta "Memória" creio não ser possível fazê-la de forma mais sintética, impressiva ou melhor, pelo que tem, de tanta Vida.
Bom dia!

Presépio no Canal said...

Muito Obrigada, APS! :-)
A sua opinião tem muito valor para mim, sabe disso...Gosto muito da sua escrita, da forma límpida e profunda como tece as palavras, quer em prosa, quer em poesia.
Ficou muito por dizer, neste texto. Mas, em Outubro, vamos voltar a esta foto. ;-)
Beijinho cordial! Bom dia!

Margarida Elias said...

Beijinhos, Sandra! Já tinha saudades dos teus posts! :-)

Presépio no Canal said...

Também já tinha saudades de visitar os blogues amigos. :-)

Em Portugal, foi, literalmente, comer, dormir e gozar o céu azul...

Bjinho amigo. :-)

João Menéres said...

Pelos vistos já estás em Portugal !

Li, com muita calma, tudo o que escreveste .
Fiquei a saber coisas que ignorava ( e não me estou a referir apenas a aspectos da tua vida ).
Por isso, achei um quase milagre ter escolhido este fim de tarde para te visitar.

Então em Outubro regressas à Holanda ?

Um beijo, querida Sandra, e que te sintas MUITO BEM no sítio onde estás.

Presépio no Canal said...

Olá, João :-)

Estive em Lisboa, nas últimas duas semanas. Agora, já estou de regresso à Holanda.
Conto, no entanto, em Outubro, voltar a Portugal, mas para uma estadia mais curta.
Gosto muito de ir a PT nas épocas baixas. Agora, por exemplo, apanhámos uns dias primaveris muito bons, nada de grandes confusões e uns preços óptimos de hotelaria.
;-) Lisboa, nesta altura, é excelente para descansar, tratar de assuntos, etc. Tudo nas calmarias...

Beijinho grande e obrigada pela tua visita. :-)

Envio-te um mail, em breve.